DESAFIOS DO EMPREEENDORISMO FEMININO

quinta-feira, 17 de junho de 2010

Uma reflexão sobre as dificuldades das mulheres pobres na condução de projetos geradores de renda.

Sônia Regina Corrêa Lages


Resumo:

O anseio por um projeto profissional e pela emancipação feminina, o desemprego do cônjuge ou a necessidade de aumentar a renda familiar têm levado a mulher para o mercado de trabalho. No entanto, tal inserção não tem sido feita nem de forma rápida, nem sem empecilhos, e isto se agrava quando diz respeito ao empreendedorismo feminino. Todavia, se as mulheres mais favorecidas economicamente encontram meios para vencer as barreiras aos seus projetos de dirigirem seu próprio negócio, a situação se agrava e se torna mais complexa quando diz respeito às iniciativas das mulheres pobres em efetivar sua emancipação social e independência econômica, através de negócios de geração de renda. Esse, pois, é o objeto do presente artigo: o de propor uma reflexão sobre as dificuldades encontradas por aquelas mulheres em vencer a pobreza através de atitudes empreendedoras.

Abstract:

The yearning of a professional project and female emancipation, consort's unemployment or the necessity to increase family's revenue has brought women to the work market. Such entrance, however, has not been done neither quickly nor without hindrances, and this gets worse if it concerns women's entrepreneurship. But if economically favored women find ways to overcome the barriers for projects of managing their own business, situation gets worse and more complicated when refering to poor womens' initiatives trying to achieve their social emancipation and economic independency, through income generating business. This is, then, the subject of this article: To propose a reflection about dificulties found by that women to overcome poverty through entrepreneurial attitudes.


O mundo do trabalho encontra-se acometido de transformações profundas que abrem e fecham campos de perspectiva. Nas últimas três décadas, o mundo industrial se encontra entre o processo de tecnologização e o de globalização. O crescimento da automação devido às tecnologias de informática, o downsizing das empresas, as megafusões a custos bilionários, a redução da intervenção do Estado, o enxugamento no setor público, levaram a um desemprego em massa e a reconfigurações da estrutura do emprego (KAUFMANN, 2002). Assim, a imperativa necessidade de se manter incluídos num mercado de trabalho que tende cada vez mais a excluir aqueles que não correspondem ao novo perfil que o capitalismo exige faz surgir importantes dispositivos concretos de reação às formas capitalistas de desenvolvimento, como o cooperativismo e a geração de emprego e renda que tenta driblar a crise do mundo do trabalho.

Como nos relata Vasconcelos (2003), as primeiras cooperativas de moinhos de farinha tiveram início no Reino Unido por volta de 1760, o que atendeu à necessidade de uma população faminta de obter alimentos a preços módicos, em um contexto de altos preços e monopólio do milho. A idéia se espalhou por outros países da Europa na tentativa de proteger os trabalhadores e artesãos do desemprego, ocasionado pela competição dos novos processos industriais. Essas idéias e práticas inspiraram no século XIX os pensadores socialistas utópicos: Owen na Inglaterra; Fourier Buchez e Blanc na França, que tiveram como proposta a idéia de pequenas comunidades que atuavam através da troca direta de suas mercadorias. As cooperativas inglesas e francesas acabaram por se tornar modelos para outras experiências similares na Europa. A partir do século XX diferentes tipos de cooperativismo foram desenvolvidos, considerando os distintos contextos nacionais, históricos e de relação com o Estado. Em países de Terceiro Mundo, projetos cooperativistas têm sido promovidos tanto pelo Estado como pela sociedade civil organizada. Assim, durante quase 250 anos de experiência, o movimento cooperativo desenvolveu diferentes projetos. No âmbito do trabalho se destacam as cooperativas de consumo relacionadas às lojas de alimentos e outros produtos básicos, as cooperativas de trabalhadores e as cooperativas de habitação, crédito e poupança (VASCONCELOS, 2003). Quanto às experiências femininas de geração de emprego e renda, primeiramente é importante rever o percurso histórico da mulher no mercado de trabalho, a fim de que se possa compreender mais claramente a dinâmica daqueles projetos.


1 O percurso histórico do trabalho feminino:

No Brasil, desde os primeiros anos de dominação colonial, a mulher vem sendo submetida a um discurso moralizador e patriarcal que tanto tenta adestrá-la dentro do contrato conjugal, a partir de uma ideologia sobre o uso de seus corpos e de seus prazeres, assim como submetê-la a diversos tipos de restrições, que abarcam vários campos. Dentre eles, o do trabalho, em que as mulheres, além de obterem menores salários, têm dificuldades em assumir postos de comando dentro das empresas. Tais dificuldades alcançam, ainda, a ocupação dos espaços públicos e políticos. A impossibilidade de compartilhar com os homens tais campos contou com justificação ideológica da religião cristã que, através da poderosa violência psicológica, acabou por naturalizar a incapacidade e a inferioridade femininas. No entanto, após um longo período de invisibilidade, um novo momento para a mulher vai surgindo, propiciado pelo seu acesso à educação e sua participação nas lutas sociais já no começo do século XX, o que lhe proporcionou a obtenção de direitos civis e políticos. Os processos socioeconômicos e tecnológicos que se difundiram a partir dos anos 70 afetaram radicalmente as instituições sociais, entre as quais o casamento e a família. A nova divisão sexual do trabalho é redefinida, assim como a dicotomia entre o público e o privado atribuída segundo o gênero. Assim, a mulher passa a exercer múltiplas jornadas de trabalho e o homem é chamado a comparecer com mais freqüência nos cuidados com a educação dos filhos e da casa.

Muitas mulheres deixaram de restringir suas aspirações ao casamento e aos filhos (VAISTMAN, 2001). Desta forma, as últimas décadas do século XX vêem crescer a participação das mulheres no mercado de trabalho mundial, inclusive no Brasil. Este aumento da participação ocorreu junto com outras transformações da sociedade, mas não foi suficiente para que as mulheres tivessem igualdade dentro do mercado de trabalho (MELO, 2001). No entanto, apesar de crescente, a participação feminina no mercado de trabalho é ainda pequena, se comparada com a dos homens. Além disso, na maioria das vezes, elas exercem atividades de média e baixa qualificação pessoal. Apesar de a escolaridade das mulheres ser comparativamente mais elevada do que a dos homens, as condições de trabalho e remuneração tendem a ser inferiores e, ainda, podem ser
consideradas limitadas as oportunidades de inserção das mulheres em posições mais qualificadas,
estando estas mais restritas a alguns setores do mercado (Id., ibid.). O século XXI propõe mudanças radicais em relação à natureza, dominada agora pela tecnociência. Surge a imagem de rede, a profusão de espaços e identidades e a permeabilidade das fronteiras. Na era da informação, do conhecimento, das máquinas, o sujeito se torna plástico, múltiplo. Mas se esse novo panorama é a realidade de muitas mulheres no Brasil que, usufruindo de todas esses novos discursos e práticas se tornaram emancipadas, outras muitas mulheres continuam sobrevivendo em outros “brasis”, não tendo acesso a essas novidades ou, ao contrário, tendo de carregar sozinhas o peso de tantas mudanças. Enfrentando a pobreza, continuam sendo as principais responsáveis pela procriação e pelos cuidados domésticos, sem a presença de uma figura masculina e de uma renda que sustente a sua família (VAISTMAN, 2001).

Diferentes práticas institucionais, vindas de várias tradições (programas de governo, ONGs, educação popular, associações de bairros, sindicatos), têm investido em projetos geradores de renda, evidenciando o potencial dessas atividades na luta contra a pobreza. Assim, o tema desenvolvimento coloca num dos seus alvos as mulheres pobres e as possíveis alternativas de sustentabilidade econômica dessa categoria de gênero e classe social.


Mulheres pobres, empreendedorismo e desenvolvimento:

As experiências de geração de emprego e renda costumam se deparar com um problema bastante grave: a dificuldade que grupos populares têm de assumir uma postura gerencial empreendedora em seus negócios, mesmo após treinamentos para capacitação técnica. Essa dificuldade se acentua quanto diz respeito às mulheres (SIMIÃO, 2003). Com uma cultura fortemente internalizada, que as colocou no lugar de eternas doadoras, nutridoras, quando se enfatiza seu altruísmo como sendo uma qualidade feminina, as mulheres acabam por adotar comportamentos que reproduzem esses papéis, e que redundam por construir barreiras no mundo do trabalho. Os obstáculos são abrangentes e precisam de ações diferenciadas. Como diz Simião, destacam-se atitudes como as de vender “fiado” a uma amiga, ou a de fazer constantes retiradas do caixa para comprar alimentos ou remédios para alguém que adoeceu. Esse comportamento é compreendido como sendo natural, pois, se o dinheiro está lá e existe uma necessidade, ele poderá ser utilizado. Uma mudança de atitude, depende menos de treinamento e conhecimento técnico do que de uma transformação na forma como a experiência está sendo apreendida pelo grupo, vista muitas vezes mais como uma atividade de caráter complementar do que uma opção de trabalho. Outro obstáculo a que se refere o autor é a imagem, que também tem raízes culturais, de que um grupo empreendedor feminino é um grupo de mulheres que se juntam para jogar conversa fora, uma maneira de passar o tempo, apesar de desenvolverem uma atividade que acaba tendo como resultado algo comercial. Atrelada a essas questões, vem outra, a da sustentabilidade do negócio. Aqui também encontram-se outras barreiras. Dados da GEM1 (2002) mostram que no Brasil o empreendedorismo acontece mais por necessidade do que por oportunidade. Segundo a pesquisa, o Brasil ocupa a 7ª posição no ranking entre os dez países mais empreendedores. A TAE (Taxa de Atividades Empreendedora Total) por necessidade em 2002, foi de 7,5%, ao passo que ficou em 5,8% o empreendedorismo por oportunidade. Dessa forma, tais empreendimentos, na falta de uma visão focada no planejamento estratégico e numa visão empresarial, tendem a ter uma vida muito curta. Se o micro-crédito aplicado à produção é eficaz na redução da pobreza, viabilizando alternativas para sua minoração, quando se aplica às mulheres, apresenta obstáculo a mais, devido às garantias adicionais que algumas entidades financeiras exigem. De uma forma geral, as mulheres são consideradas dependentes dos cônjuges, ou de outras figuras masculinas da família e, sendo assim, os créditos lhes são negados, exigindo-se para tal garantias adicionais, como o aval de seus companheiros ou familiares do sexo masculino. É fato que a pobreza atinge não só as mulheres, mas a humanidade. Mas outro fato é que a mulher sempre teve problemas de acesso ao modelo de desenvolvimento dos países capitalistas do ocidente, como visto acima. A relação assimétrica de poder existe e perdura, apesar do discurso da pós-modernidade. Mas se existem barreiras de acesso aos recursos econômicos e insumos, existe um a priori, como diz Bourdieu (2002), que é a violência simbólica. A dominação patriarcal, a opressão e a discriminação foram tão fortemente internalizados nos corpos e na psique, que se acaba por considerar como natural a divisão sexuada das coisas. Caberia à mulher saborear a felicidade do cumprimento do dever na manutenção do capital social da família: conservação da solidariedade, da integração da família, do trabalho doméstico.

As transformações vêm acontecendo há alguns anos, no entanto direcionadas às mulheres mais privilegiadas sócio-economicamente. A educação, o poder econômico, as relações sociais e familiares, fundadas em posturas e pensamentos inovadores e transgressores, acabaram por sedimentar um espaço que possibilitou novos comportamentos em relação ao papel da mulher e dos homens. Apesar de não ser essa a discussão do presente artigo, cabe salientar que essas mulheres têm pago um alto preço por essas mudanças – dupla jornada de trabalho, stress, doenças psicossomáticas, cobranças pela ausência no lar e o cuidado dos filhos, dentre outros. Além disso, a inserção da mulher no mercado de trabalho, tem viabilizado o projeto capitalista de desenvolvimento, mas não tem sido capaz de lhe trazer benefícios como uma maior disponibilidade financeira e de tempo para participar de atividades de lazer ou culturais, ou mesmo investir no seu aprimoramento educacional. Tem sido apenas, sobrecarga de trabalho, uma vez que o acréscimo na renda familiar é direcionado à própria família (D’ÁVILA NETO, 1995). Mas se transformações são realidades concretas para um parcela de mulheres, um outro grande número delas continua desprovida dos arsenais de que as classes dominantes são possuidoras. Dessa forma, algumas práticas se fazem necessárias, para tornar viável o empreendedorismo feminino nas classes sociais mais desfavorecidas: inicialmente, mudanças culturais no sentido de redimensionar os papéis sociais da mulher. Talvez seja isto o que maior empenho e tempo exija, uma vez que a emancipação feminina passa pela superação da reprodução social dos modelos de homem e mulher, que as instituições impõem, inclusive a do Estado e a da educação, dentre outras. São elas as grandes responsáveis pelas práticas e propagação da opressão sobre as mulheres. O incentivo às iniciativas do cooperativismo, que integrem o trabalho de mulheres pobres, com o apoio da sociedade civil organizada, universidades e poder público, e a atuação de um governo participativo, uma vez que sem ele não pode haver continuidade de uma política de crédito para os mais pobres, nem tampouco uma
política de erradicação da pobreza, são ações de fundamental importância para o sucesso da gestão feminina naqueles empreendimentos. O desenvolvimento, através do cooperativismo, agrega valores e práticas que fazem com que os obstáculos possam adquirir um contorno mais suave. Assim, a Recomendação193 de Promoção de Cooperativas, oriunda da Conferência Internacional do Trabalho/Genebra/2002, propõe a promoção e o fortalecimento da identidade das cooperativas com base:

(a) nos princípios cooperativos de auto-ajuda, espírito de responsabilidade, democracia, igualdade, eqüidade e solidariedade, bem como nos princípios éticos de honestidade, transparência, responsabilidade social e interesse por outros;

(b) nos princípios cooperativos de associação voluntária e acessível; controle democrático
pelo associado; participação econômica do associado; autonomia e independência; educação,
formação e informação; cooperação entre cooperativas e interesse pela comunidade. (Disponível em http://www.ilo.org/public/portugue/region/ampro/brasilia/info). Além disso, a Recomendação 193 prevê medidas que devem ser tomadas para promover o potencial de cooperativas para incentivar seus associados a:

(c) criar e desenvolver atividades geradoras de renda e emprego decente e sustentável; (b) desenvolver capacidades de recursos humanos e conhecimento dos valores, vantagens e benefícios do movimento cooperativo por meio de educação e formação; (c) desenvolver seu potencial comercial, inclusive suas capacidades empresariais e gerenciais; (d) fortalecer sua competitividade como também lhes propiciar acesso a mercados e instituições financeiras; (e) aumentar poupanças e investimentos;

(d) melhorar o bem-estar social e econômico, levando em consideração a necessidade de eliminar todas as formas de discriminação;

(e) contribuir para um desenvolvimento humano sustentável e (h) criar e expandir um setor específico, viável e dinâmico da economia que inclua cooperativas e atenda às necessidades econômicas e sociais da comunidade.


CONCLUSÃO

A reflexão sobre as práticas que possibilitam a integração das mulheres pobres ao mercado de trabalho, através de iniciativas empreendedoras, passa por uma série de transformações, a maioria delas mediadas pela questão cultural. Tal questão colocou a mulher brasileira, há 500 anos, desempenhando papéis sociais atrelados à área doméstica – responsabilidade pela educação dos filhos, saúde e harmonia familiar, cuidados com a redução das despesas com a alimentação, com a higiene, com o vestuário, dentre outras tarefas de economia e zelo domésticos. Tais estereótipos, dentre outras conseqüências, acabaram por dificultar em grau as iniciativas das mulheres pobres em empreender atividades geradoras de renda e emprego, tanto em face de uma cultura que mantém em atividade a sociedade patriarcal brasileira, como em decorrência do próprio Estado, que atrelado às relações de poder masculino, cria empecilhos para o avanço daquelas iniciativas. A presente reflexão propõe como sendo fundamentais para o avanço do empreendedorismo feminino, no que se refere às comunidades emprobrecidas, mudanças, tanto nos canais que reproduzem de forma esteriotipada os papéis femininos na sociedade, como nas políticas econômicas, que devem adequar seus planejamentos de crédito de forma a estarem condizentes com a realidade daquelas mulheres. Somente dessa maneira pode-se pensar em mulheres pobres e desenvolvimento sustentável.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BOURDIEU, Pierre. A dominação masculina. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
D’ÁVILA NETO, Maria Inácia. Mulheres, cultura e desenvolvimento. In: —. (org). Desenvolvimento
Social: desafios e estratégias. UNESCO Chair on Sustainable Development Publishing, UFRJ/EICOS.
Versão em inglês e português, ano 1995 distribuição:UNESCO, Paris REFERÊNCIA NÃO APARECE
NO DESENVOLVIMENTO DO TRABALHO
KAUFMANN, J. N. Turbulências no mundo do trabalho. Quais são as perspectivas? Revista de
Serviço Social, São Paulo: n. 69, 2002.
MELO, Hildete Pereira de. O feminino nas manufaturas brasileiras. In: MURARO, Rose Marie;
PUPPIN, Andréa Brandão . Mulher, gênero e sociedade. Rio de Janeiro: Relume e Dumará:
FAPERJ, 2001.
SIMIÃO, S. D. As coisas fora do lugar. Gênero e o potencial de programas de geração de emprego
e renda. Disponível em: http://www.redemulher.org.br/generoweb/daniel.htm. Acesso em: 29
maio 2003.
VAISTSMAN, Jeni. Gênero, identidade, casamento e família na sociedade contemporânea. In:
MURARO, Rose Marie; PUPPIN, Andréa Brandão. Mulher, gênero e sociedade. Rio de Janeiro:
FAPERJ, 2001.
VASCONCELOS, Eduardo Mourão. O poder que brota da dor e da opressão – empowerment,
sua história, teorias e estratégias. São Paulo: Paulus, 2003.

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